segunda-feira, 10 de março de 2008

Flâneur, blasé, zappeur: variações sobre o tema do indivíduo.


O Iuca mandou esse texto no meu e-mail, e eu achei uma abordagem interessante sobre a relação indivíduo e sociedade. E assim que eu li, eu resolvi compartilhar. Espero que gostem.

Marco Toledo de Assis Bastos

RESUMO: O presente artigo vasculha, nos tipos da modernidade, elementos que contribuam para a descrição dos personagens contemporâneos. Da reinvenção da cidade pelo flâneur, que desliza pelo tecido urbano, aos elementos impessoais identificados por Simmel no comportamento blasé, abundam imagens de uma civilização dinamizada pela vida privada. Do flanador ao blasé, e do blasé ao zapeador, há uma linha contígua na individuação moderna, infelizmente de difícil apreensão. Isso porque quão maior a invisibilidade desses indivíduos, maiores as possibilidades de leituras sociais. O presente artigo procura assim problematizar o conceito de indivíduo, em oposição a categorias universais como sujeito ou cultura e rumo às menores células sociais.

PALAVRAS-CHAVE: Flanador; Blasé; Zapeador

ABSTRACT: The following article searches thoroughly the characters modernity has brought to us, seeking out contributions for portraying contemporary personae. From the reinvention of the city by the French flâneur and its particular way of moving around up to the impersonal elements Simmel found out on the blasé behavior, there are several images of a civilization dynamized by private life. From the flâneur to the blasé, and from the blasé to the zappeur, there is a straight line in what regards modern individuation, even though out of plain sight. This is because the less visible these characters are, the better are the chances for social analysis. The following article is thus an attempt to work out the concept of individual as a minor social cluster, in opposition to wide-ranging concepts such as subject or even culture.

KEY WORDS: Flâneur; Blasé; Zappeur

RESUMEN: El presente artículo investiga en los tipos de la modernidad elementos para describir los personajes de la contemporaneidad. Desde el recrear de la ciudad por el flâneur, que desliza por el paisaje urbano, hasta los elementos impersonales que Simmel identifica en la conducta blasé, hay muchas imágenes de una civilización dinamizada por la vida privada. Desde el flâneur hasta el blasé, y desde el blasé hasta el zappeur, hay contigüidad en la individuación moderna aunque de dificultosa aprehensión, puesto que cuanto menos visibles son los individuos, más grandes las posibilidades de lecturas sociales. El presente artículo intenta así interrogarse sobre el concepto de individuo, en oposición a categorías universales como sujeto o cultura y a camino de las más pequeñas células sociales.

PALABRAS CLAVES: Flaneur; Blasé; Zappeur

RÉSUMÉ: Cet article cherche à fond dans les caractères de la modernité les éléments qui contribuent pour la description des personnages contemporains. De la réinvention de la cité pour le flâneur, qui se glisse à travers du tissu urbain aux éléments impersonnels identifiés pour Simmel dans le comportement blasé, abondent des images d’une civilisation dynamisée par la vie privée. Du flâneur au blasé, et du blasé au zappeur, il y a une ligne continuelle dans la individuation moderne, malheureusement de difficile appréciation. C’est parce que les moins visibles sont ces individues, les mieux sont les possibilités de faire des lectures sociales. Cet article donc éssai définir le concept de l’individu, à l’opposé des catégories universelles comme sujet et culture, et en direction de les plus petites cellules sociales.

MOTS-CLÉ: Flâneur; Blasé; Zappeur

O modo como pessoas individuais definem individualmente

seus problemas individuais e os enfrentam com habilidades e

recursos individuais é a única questão pública remanescente.

Zygmunt Bauman

I. O INDIVÍDUO

A maldição da modernidade é sua herança teleológica, cujo tratamento analítico circunscreve os problemas em arcabouços totalizantes. Como seu ideário fundador é o universalismo racionalista, fora imperioso às teorias sociais de então se proporem a si mesmas como ciência. Importa menos os objetos e indivíduos, qualquer especificidade. É preciso encontrar o universalismo que caracteriza uma cultura, uma sociedade. Cultura seria então toda produção social, material e imaterial, uma estrutura total ou paradigma invisível que explicaria todo o corpo social, toda a mega-máquina de produção simbólica que é a fabricação de uma sociedade. As relações e mediações entre indivíduo e espaço ficam mormente emagrecidas em uma abordagem que foca o todo.

Zygmunt Bauman comenta o problema, parafraseando a inscrição do Portal do Inferno de Dante Alighieri: abandonai toda esperança de totalidade, tanto futura como passada, vós que entrais no mundo da modernidade fluida. Chegou o tempo de anunciar, como o fez recentemente Alain Touraine, o fim da definição do ser humano como um ser social. Em seu lugar, o princípio da combinação da definição estratégica da ação social que não é orientada por normas sociais; pode ser encontrado dentro do indivíduo, e não mais em instituições sociais ou em princípios universais. Bauman entende a modernidade dentro de uma tipologia termodinâmica, que foi sucintamente explicada nessa entrevista:

Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da “liquidez” para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades ‘auto-evidentes’. É verdade que a vida moderna foi desde o início “desenraizadora” e “derretia os sólidos e profanava os sagrados”, como os jovens Marx e Engels notaram. Mas, enquanto no passado isso se fazia para ser novamente “reenraizado”, agora as coisas todas – empregos, relacionamentos, etc. – tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis.

A retomada da categoria do indivíduo, da menor unidade social, serve a uma radiografia social que, nos termos de Simmel, pode penetrar no significado íntimo da vida moderna e de seus produtos, penetrar na alma do corpo cultural, buscando resolver a equação: que estruturas se dispõem entre os conteúdos individual e superindividual da vida? O próprio mapear das personalidades individuais junto a forças externas é, no sentido referido por Bauman, o relacionar de cada estratégia de vida particular às formações sociais, à suas racionalidades específicas.

O problema do conceito é sua herança do liberalismo econômico, para quem indivíduo significa exclusivamente consumidor. Também a ciência política entendia a categoria como ferramenta ideológica do conservadorismo político, na medida em que se recusava a trabalhar qualquer instância cultural, social ou política, perfazendo toda análise por meio de condicionantes e determinantes econômicos. Mas nem consumidor, nem idiossincrasias individuais são instâncias anódinas.

De todo modo, a ciência política e o liberalismo econômico não esgotaram a idéia. O sociólogo francês Gabriel Tarde, anátema do século XIX, procurou compreender as relações sociais por meio de suas conexões, de suas redes. Afastado do ambiente acadêmico da época, seus escritos não almejam o cientificismo objetivista que ecoava alhures, distância que lhe permitiu traçar correlações entre indivíduo e sociedade por veios inauditos, onde a linguagem e a intersubjetividade forjam a base de sua sociologia, focada na expressão interativa entre indivíduo e sociedade. É aliás o reconhecimento do indivíduo como móvel das complexas relações que permite sua “pseudo-sociologia” ignorar qualquer diretriz normativa.

II. O FLÂNEUR

Baudelaire fez da figura do flâneur o protótipo do sujeito moderno. Tratava-se de um andamento muito particular, um apalpar na materialidade moderna, toda ela incrível. O próprio poeta descreve sua vagabundagem pelos bulevares de Paris como uma exploração das gamas perceptivas da cidade. Isso se fazia pelo vagar errante, gracioso e fortuito que mantém a percepção aberta para experiências de toda ordem. Perder-se nas malhas urbanas ou, como prefere Maffesoli, deixar-se levar pelas vagabundagens iniciáticas, constitui o cerne da flânerie. A natureza do flanador não deriva do arquétipo banal do burguês, mas da particular produção de sentido que a cidade possibilita ao cidadão: indivíduos que sentem a cidade.

O flâneur reinventa a cidade a cada passeio, interpreta a infra-estrutura amealhada de qualquer significação para aqueles que não compreendem suas peculiaridades, sua modernidade. O tecido urbano é grafado por um estriar singular, conjugando sua superfície e forjando um texto de significação privada. Seus estetas agem por apreensões individuais e nem mesmo suas remissões se dão coletivamente. A própria maneira de tecê-las: andar, apalpar, errar por caminhos não definidos define as categorias de apreensão pautadas por um ritmo próprio, que se preocupa tão somente com metáforas pessoais para a significação do espaço. Toma-se o espaço público como propriedade privada, e sentimentos de pertencimento são forjados por emulsões incoerentes que só se reúnem na unidade artificial do flâneur.

Nos afamados ensaios de Walter Benjamin sobre o flâneur, sobretudo em Paris do Segundo Império, o autor descreve esse andarilho da cidade com certa ironia, em nada muito disfarçada. Benjamin direcionava sua verve contra uma literatura muito em voga na Paris da segunda metade do século XIX, que tratava de descrever os habitantes da cidade de maneira amistosa, pueril, familiarizando os cidadãos com os tipos diferentes que perambulavam pelas ruas, uma tentativa de dirimir as inquietações e medos da metrópole. Essa literatura fisiologista objetivava, diz Benjamin, dissolver o elemento estranho que a metrópole criava descontroladamente. O fundamental na descrição da flânerie, nos termos do ensaísta, não está nas tipificações de gêneros, na ‘botânica do asfalto’, como a chamava. Benjamin se interessa por um desdobramento da narrativa baudelairiana, onde o conflito não é minimizado mas, pelo contrário, é o fio da estória. Não se procura apaziguar o conflito, mas tencionar, viver e conjugar a desordem.

A tensão dessa formação social, as contradições e ambigüidades que a cidade faz procriar podem ser encontradas na abordagem seminal de Baudelaire, cuja proposição narrativa lembra mais um devaneio que qualquer descrição explicativa. Em Baudelaire concentra-se a ambigüidade imanente do flâneur, na medida em que a assincronia entre a multidão e indivíduo imprime recortes na cidade, atribuindo-se sentidos particulares ao espaço público, aqui entendido como “sem proprietário”. O gesto de flanar, aliás, constitui-se por si só em uma atitude de presença e ausência – simultaneamente – na aglomeração, pois insere o indivíduo na multidão ao mesmo tempo em que aprofunda sua solidão, seu isolamento da grande massa. É o turbilhão da cidade que, unindo todos os elementos, também aparta os sentidos de uns e de outros. Essa contradição permite ao flanador significar os espaços com um estilo não racionalista, quase um devaneio, tecendo uma subjetividade entre o passado e seus entrechoques.

III. O BLASÉ

Simmel, de maneira complementar, descreve a essência da urbanidade moderna como o blasé, a propriedade de não se deixar impressionar pelas diferenças abismais que a cidade proporciona: a base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação dos estímulos nervosos, que resulta na alternação brusca e ininterrupta entre estímulos exteriores e interiores. Há, para Simmel, uma diferença fundamental entre o homem rural e o urbano no que respeita as condições psicológicas de cada um: a cidade imprime em seus habitantes grandes contrastes, traduzidos por imagens em mudança que convergem para uma única e mesma apreensão de impressões súbitas.

Essas condições materiais alteram os fundamentos sensoriais da vida psíquica. Atravessar a rua, comprar comida, pedir informação, requerem um ritmo e especificidade de ações em muito alienígenas para os habitantes da cidade pequena e do ambiente rural. A metrópole fratura o rito constante da conquista de hábitos permanentes, típica da vida calma da cidade pequena. Para Simmel, a vida na metrópole exige de seus habitantes o uso exaustivo dos recursos cognitivos, pois a mudança constante no espaço vivido requer intelecção. Na medida em que o intelecto é entendido como a mais adaptável das forças interiores, Simmel compreende o indivíduo da metrópole como alguém que se pauta pela racionalidade, com a cabeça, ao invés do coração, pois não haveria recurso mais indicado que o intelecto para lidar com as contingências metropolitanas.

Quando a reação aos fenômenos metropolitanos é transferida para essa região “mais dura”, o intelecto, o indivíduo se torna aparentemente frio, menos sensível às variações do ambiente e, em sua superfície, inacessível às regiões mais profundas da personalidade. A predominância da inteligência no homem metropolitano, diz Simmel, endurece-o. Paralelamente, a metrópole como sede da economia monetária concentra as relações econômicas de compra, venda e troca, onde tratar com homens é ineficiente e prosaico, trata-se com coisas. Todas as relações perpassam operações lógicas, e toda individualidade genuína é desprovida de consideração, pois não passível de mediação pecuniária. Para Simmel, a economia monetária e o domínio do intelecto são eventos intrinsecamente ligados, subproduto das aglomerações urbanas.

A diferença é fundamental: trata-se de transferir todas as relações emocionais e íntimas entre pessoas para princípios racionais. O homem vira um número e é tomado como um elemento em si mesmo indiferente: a individualidade é reduzida a quantidades, e apenas as realizações objetivas e mensuráveis são de interesse. São estes aspectos que contrastam com a natureza do pequeno círculo, em que essa vida psíquica (ou subjetividade) moderna é estranha e onde, de maneira inversa, o fato de se conhecer o distribuidor e o cliente são fatores fundamentais. A metrópole moderna, escreve Simmel, é provida quase que inteiramente para compradores inteiramente desconhecidos, que nunca entram pessoalmente no campo de visão propriamente dito do produtor.

Os elementos que trouxeram exatidão e impessoalidade à vida ordinária também criaram uma individualidade singular que, para Simmel, é expresso pelo comportamento blasé, fenômeno extremo da metrópole. A atitude blasé seria o resultado de uma carga excessiva de estímulos contrastantes, em rápida mudança e compressão exagerada, gerando uma espécie de indiferenciação no indivíduo aos fenômenos externos: tudo soa parecido, desprovido de novidade. A intelectualidade metropolitana seria resultado desse esgotamento nervoso, fruto da perseguição desregrada ao prazer que agita os nervos até o limite de reatividade, até que parem de reagir. De maneira oposta, mas complementar, é também por meio da rapidez e incoerência nas mudanças que as impressões menos ofensivas podem originar reações inesperadas, violentas, estirando os nervos bruscamente em outra direção até suas últimas reservas se exaurirem. O indivíduo blasé é, assim, alguém emocionalmente incapaz de reagir a novas sensações com a energia que se esperaria. Não há surpresa.

A matriz fisiológica do blasé não se desvincula da economia monetária, da operação de reduzir tudo a números. O blasé, nesse sentido, consiste na deterioração do poder de discriminar e de valorar qualquer objeto de maneira particular. Claro que os objetos são percebidos, mas significados e valores são experimentados (ou vivenciados, nos termos de Benjamin) como destituídos de substância. Não apenas os objetos, mas também os indivíduos gravitam em prateleiras infinitas de um lusco-fusco uniformizado, onde nenhum elemento guarda preferência substantiva sobre outro, efeito reflexo da economia monetária, que assemelha indivíduos a objetos. Mas não se trata de um processo unidirecional: é a própria autopreservação subjetiva, reagindo à proliferação desmesurada de objetos, que desvaloriza o mundo objetivo. A personalidade embotada do indivíduo metropolitano é um mecanismo de defesa, uma recusa aos estímulos infinitos e uma procura por possibilidades de acomodação.

IV. O ZAPEADOR

Apesar de haver tantas imagens do flâneur quanto concepções de modernidade, as imagens desse desfrute urbano espelham uma vida pública dada em termos individuais. São imagens que apresentam uma civilização dinamizada na esfera privada, nas relações profissionais e hábitos individuais. Do flanador ao blasé, e do blasé ao zapeador, há uma linha contígua na individuação moderna, infelizmente de difícil apreensão. Isso porque quão maior a invisibilidade destes indivíduos, maiores são as possibilidades de leituras sociais.

No celeiro contemporâneo de personagens e indivíduos, há pistas dessa individualidade hiperacelerada. Falamos em zapeador porque a metáfora televisiva do agente com um controle remoto parece mais exata. Também é possível se remeter ao ciberespaço, com suas variações de ciborgues, cibridos e quetais. Mas ciberespaço é uma metáfora espacial, um termo infeliz para designar uma dimensão de vivência desprovida de espaço. Há imaginários para se imergir, para zapear.

Zappeur porque o padrão interacional tem a lógica do controle-remoto, pilhando cenas, idéias e sons, e os organizando segundo um tempo interior que não se conecta com as aglomerações urbanas. O flâneur quer se perder na cidade, exercício impossível ao blasé, para quem todos os becos e vielas são idênticos em sua conformação metropolitana. Com o zappeur é também diferente. Os movimentos pela cidade são sincopados, combinando pacotes de subjetividade com figuras de seu imaginário. O nexo é, uma vez mais, inteiramente dado na esfera privada.

Zapeamos diariamente inúmeros pacotes de subjetividade prontos para consumo. Consumo não como efeito mecânico da relação pecuniária, mas elemento interagente na eclosão de processos, sismógrafo da movimentação cultural. As figuras contemporâneas embaralham os ícones mais virgens, misturando sinais antagônicos e fazendo da identidade um produto do consumo, este em constante reciclagem nômade. Zapear é ser espectador desse mundo de imagens sobrepostas.

Também o corpo projeta ícones de identificação, com adereços que não enfeitam, mas servem ao propósito de comunicar quem se é, de onde se veio e para onde se está indo. Tatuagens, body piercings, roupa démodé ou unissex, visual vintage. Adotam-se padrões de vida como padrões de consumo, numa curiosa confusão entre ser e aparentar. À austeridade moderna, emerge a opção estética nem sempre vinculada à conduta ética: vestidos com as anti-regras de um despojamento obrigatório. Os layouts são muitos: careca, cabelo ensebado com gel, topete, tênis, calça jeans, celular, mochila up to date, barba por fazer, costeleta sempre feita – o estilo é étnico, conforme a world music, a moda é street, conforme a passarela, e a ideologia é a das minorias, porquanto mediadas. Se a identidade é uma proposição inoperante, também o são os mecanismos de identificação.

Quem são os zapeadores? Basta olhar mais de perto: são publicitários, jornalistas, arquitetos, fotógrafos, designers. Indivíduos que trabalham com imagens em um mundo de demanda infinita do material. Dietmar Kamper conta que uma enquete surpresa constatou que a profissão que as jovens alemãs mais desejam é a de modelo, e entre os jovens, a de artista, isto é, designer: uma acomodação super-rápida às exigências sociais: uns desejam tornar-se imagem, outros querem fazer imagens, ambos para capturar a única significação que ainda conta: atenção pública.

E onde estão estes indivíduos? Eles habitam a música, que é eletrônica, do trance ao rap, nos conformes com a era tecnológica. Festivais turbinados por anfetaminas superprocessadas. O ambiente é lounge, o sentimento, amor, e a ordem, transcendente. A conversa é simbólica e não-gramatical, e a poesia, visual. São estas experiências compartilhadas que legitimam os sujeitos em condição de criadores de linguagem – desde as gírias e neologismos até a produção de novas narrativas que forneçam sentidos para experiências que a cultura ainda não classificou. Indivíduos e objetos gravitam ao redor do consumo, onde shoppings e clubs não são espaços pra comprar e dançar, mas locais para ver, para se ver e para ser visto.

A referência cultural opõe-se à política institucional ou a qualquer imperativo ideológico. Em um sentido inteiramente antagônico, a referência máxima é a tecnologia, em um não usual arcabouço de citações e fragmentos de comerciais, de produtos e gadgets diversos. Cultura de mídias, agenciada por elementos desconexos. Subjetividades são codificadas por objetos tecnológicos, eles todos sem referência concreta a um lugar ou conjunto de crenças. A liberdade se quer total, e por isso mesmo, ineficaz. Quando se viu, o sujeito era uma lenda, e a lenda desapareceu. Só há indivíduos, muitos e diferentes. Fluem nessa nervura social e a tentativa de enquadrá-los dentro de uma totalidade coesa é vã.

V. BIBLIOGRAFIA

BAUDELAIRE, Charles, O spleen de Paris, pequenos poemas em prosa. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

_______________. A Sociedade Líquida. Entrevista cedida ao Jornal Folha de São Paulo, Caderno Mais!, Domingo, 19/10/2003.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas III. São Paulo, Brasiliense, 1994.

BORGES, Julio Daio. Retrato do jovem quando artista no século XXI. Digestivo Cultural. Disponível em: http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=665

GLUCK, Mary. The Flâneur and the Aesthetic Appropriation of Urban Culture in Mid-19th-century Paris. Theory, Culture & Society. Explorations in Critical Social Science. volº 20, nº 5, 2003.

LEMOS, André. Ciber-Flânerie. IN: FRAGOSO, Suely & DA SILVA, Dinorá Fraga. Comunicação na cibercultura. São Leopoldo: Unisinos, 2001.

KAMPER, Dietmar. Imanência dos media e corporeidade transcendental. Oito postos de observação para um futuro medial. Tradução de Ciro Marcondes filho. São Paulo, 1998.

KEHL, Maria Rita (org). Função Fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

PEREIRA, Beltrina da Corte, São Paulo: Cidade misturada/cidade inconclusa: zapeando a metrópole metalizada. Tese de Doutorado, ECA-USP, 1997.

PEREIRA, Wellington. Diário de um Zappeur: Elogio de uma estética do Individualismo. InSite Universitário. Disponível em http://www.insite.pro.br/Artigo%20Wellington%20Di%C3%A1rio.htm

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. IN: Velho, Otavio (org). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967.

TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.

_______________. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

VI. NOTAS

domingo, 2 de março de 2008

LOTES VAGOS: AÇÃO COLETIVA DE OCUPAÇÃO URBANA EXPERIMENTAL

www.rizoma.net
Louise Ganz*
Construção precária serve de alojamento no Itaguá. Foto: Ulisses Xavier/AS
Uma cidade em que os lotes que estão vagos possam ser usados temporariamente como espaço público. É possível imaginar?

Há alguns anos fomos casualmente ao bairro Urucuia, que se situa nos limites da cidade de Belo Horizonte com a Serra do Rola Moça (área de proteção ambiental). Trata-se de um local com residências de no máximo dois pavimentos, alguns pequenos conjuntos habitacionais e ainda alguns lotes vagos. Grande parte destes lotes estão plantados com milho, mandioca, feijão, girassol, banana, laranja, gerando uma paisagem pontuada por elementos vegetais nutritivos. Os proprietários destes lotes plantam ou emprestam para quem quer plantar alimentos ou jardins, para si ou para distribuir entre amigos e vizinhos, criando, assim, uma rede de distribuição.

Nas cidades, são reconhecidas oficialmente como áreas públicas os parques, as praças e as ruas. Os parques são grandes áreas para o lazer, que na malha urbana conformam pontos isolados e distantes entre si e que fazem com que moradores de bairros diversos se desloquem para freqüenta-los nos finais de semana. As praças, de uso mais local, existem praticamente em todos os bairros, quase sempre ilhadas pela circulação de veículos. As ruas, muito diversificadas em uma grande cidade, podem ser a própria extensão da casa, local para o lazer, o trabalho ou a domesticidade, mas também podem ser inóspitas, assépticas, apenas uma seqüência interminável de muros ou muralhas. Porém, este desenho urbano não abarca a complexidade de usos que se instalam não oficialmente em uma cidade. A constituição de um espaço público também se faz por uma prática informal, posto que áreas residuais, por toda a cidade, são ocupadas e usadas das mais variadas maneiras, sejam estas ocupações legais ou ilegais. Espaços residuais são aqueles que sobram normalmente após a implantação de uma infraestrutura, gerando áreas utilizáveis embaixo dos viadutos e passarelas, nas margens das estradas, nas beiras de canalizações, sob as redes de alta tensão, etc, ou podem ser frestas urbanas (pequenos nichos entre edificações ou sob elas, em muros), ou são acoplados à equipamentos urbanos (postes, bancos, árvores). Nestes espaços instalam-se usos diversos como habitação, inserção de bancas de vendas de materiais, plantação de hortas ou jardins ornamentais, campos de futebol, pinturas em muros, colocação de publicidade, ponto fixo para venda de serviços, etc.

O loteamento é um parcelamento da terra em lotes (pequena área de terreno urbano ou rural, destinada à construções ou pequena agricultura) que se conectam com uma área aberta (espaço público). Portanto os lotes fazem parte da lógica de um desenho urbano iniciado no século XVIII. São vários os traçados já constituídos ao longo da história das cidades desde então, porém todos eles têm em comum o fato de dividirem o território em áreas demarcadas entre o que será público e o que será privado. Por trás desse "desenho" da superfície da terra que demarca a propriedade revelam-se questões importantes para o entendimento das relações da humanidade, e conseqüente compreensão do espaço público e privado. Portanto, mais do que entender as instâncias pública e privada em campos estanques, pensamos na mobilidade que há entre público e privado.

De meados do século XX em diante, grupos de artistas atuaram na interface entre espaço público e privado, repensando essas territorialidades tanto urbana quanto dos grandes espaços abertos naturais. (Situacionistas, Fluxus, Land Art, TAZ, paisagistas contemporâneos). Os Situacionistas caminhavam pela cidade e construiam mapas psicogeográficos a partir das percepções sensoriais dos espaços, sendo estes traçados com várias partes ausentes. O grupo Fluxus explora as ruas, as esquinas, para suas apresentações e eventos, e os landartistas tanto manipulavam a paisagem materialmente, como tinham um envolvimento físico com a natureza, ou uma investigação do meio ambiente como ecossistema e realidade político-social. Vários outros poderiam ser citados, já que, tanto nas áreas de conhecimento das artes quanto do paisagismo e urbanismo, as investigações sobre a construção do território são muitas.

Hoje, em Belo Horizonte, estamos propondo uma ação coletiva de uso temporário de lotes que se encontram vagos. A idéia deste projeto é intervir nestes espaços e propiciar à moradores de vários bairros o acesso a espaços vagos próximos, aonde possam ocorrer atividades para o lazer, a cultura, a produção agrícola, ou outras, não usuais na cidade. Os lotes vagos, em sua maioria são áreas verdes, mas também áreas com vestígios de edifícios demolidos, ou são asfaltados para se tornarem estacionamentos. Os lotes, com matos ou árvores, que são muitos em Belo Horizonte, se somados, podem formar um grande quantitativo de áreas de respiração, espaços abertos, livres e verdes, podendo se tornar jardins das mais variadas qualidades. Um jardim pode ser um espaço do prazer, do encontro (como o foi o jardim de Epicuro, na Grécia antiga), ou um lugar onde ocorrem micro cadeias ecológicas através dos ciclos curtos ou longos dos vegetais, das águas, dos ventos, do solo, ou da fauna, onde também se revelam as noções de movimento e tempo. Pode ser uma acumulação de latas plantadas deixadas sobre uma laje de cobertura, ou uma movimentação de terra (escavações e acumulações), ou deslocamento de minerais e resíduos. Um jardim é um espaço para descanso, para olhar o céu, ou mesmo um espaço cercado, não penetrável, aonde um ciclo natural se desenvolve espontaneamente (como o trabalho do landartista Alan Sonfist, Time Landscape, 1965-78, NY, e os jardins de movimento do paisagista francês Gilles Clément), ou um campo fechado para descontaminação do solo (Mel Chin, Revival field, 1990-93) .

Assim, o projeto Lotes Vagos: ação coletiva de ocupação urbana experimental visa repensar o território urbano e as relações que a população pode criar com estes espaços vagos da cidade. Enquanto os proprietários não constróem em seus lotes, propomos a liberação destes espaços para o uso público, temporariamente. Desde que isto aconteça, posto ser um benefício para a comunidade, qual a contrapartida para o proprietário pode ser negociada com os órgãos públicos, prefeitura e governo estadual?

Este projeto foi criado pelo grupo Ambulante, conta com o apoio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais e patrocínio da USIMINAS e é realizado por artistas e arquitetos que trabalham coletivamente e junto a diversos grupos da população de Belo Horizonte.

*Louise Marie Ganz, é arquiteta e artista visual, professora do Unileste MG e formadora do grupo Ambulante junto com Breno da Silva).

Fonte: Lotes Vagos (www.lotesvagos.arq.br).

A Decadência do Trabalho - Raoul Vaneigem

Enviado por Capitao Solo em 2 Março, 2008 - 6:35pm.

Em uma sociedade industrial que confunde trabalho e produtividade, a necessidade de produzir sempre foi antogonista do desejo de criar. O que resta de centelha humana, de criatividade possível, em um ser privado do sono às seis horas a cada manhã, que se equilibra nos trens suburbanos, ensurdecido pelo ruído das máquinas, lixiviado, cozido a vapor pelas cadências, os gestos privados de sentido, o controle estatístico, e jogado ao fim do dia aos saguões das estações, catedrais de partida para o inferno das semanas e o ínfimo paraíso dos finais de semana, onde a multidão comunga a fadiga e o embrutecimento? Da adolescência à aposentadoria, nos ciclos de vinte e quatro horas ouve-se o uniforme estilhaçar de vidraças: rachadura da repetição mecânica, rachadura do tempo-é-dinheiro, rachadura da submissão aos chefes, rachadura do tédio, rachadura da fadiga. Da força viva esmigalhada brutalmente ao rasgo escancarado da velhice, a vida se racha por todos lados sob os golpes do trabalho forçado. Jamais uma civilização atingiu tal grau de desprezo pela vida; afogada no desgosto, jamais um geração experimentou tal raiva de viver. Aqueles que matamos lentamente nos matadouros mecanizados do trabalho são os mesmos que discutem, cantam, bebem, dançam, beijam, ocupam as ruas, pegam em armas, criam uma nova poesia. Já está se formando a frente contra o trabalho forçado; os gestos de recusa já modelam a consciência futura. Todo apelo à produtividade é, sob as condições desejadas pelo capitalismo e pela economia sovietizada, um epelo à escravidão.
A necessidade de produzir acha tão comodamente as suas justificativas que qualquer Fourastié pode encher dez livros com elas sem esforço. Infelizmente para os neo-pensadores do economismo, estas justificativas são aqueleas do século XIX, de uma época onde a miséria das classes trabalhadores fazia do direito ao trabalho o homólogo do direito à escravidão, reivindicada na aurora dos tempos pelos prisioneiros condenados à morte. O mais importante era não desaparecer fisicamente, sobreviver. Os imperativos da produtividade são imperativos de sobrevivência; mas a partir de agora as pessoas querem viver, não somente sobreviver.
O tripalium era um instrumento de tortura. Labor significa "tormento". Há uma certa leviandade no esquecimento da origem das palavras "trabalho" e "labor". Os nobres tinham ao menos a memória de sua dignidade, assim como da indignidade que afligia os seus servos. O desprezo aristocrático pelo trabalho refletia o desprezo do senhor pelas classes dominadas; o trabalho era a expiação à qual foram condenadas por toda a eternidade por um decreto divino, que os queria, por razões impenetráveis, inferiores. O trabalho se inscrevia, entre as sanções da Providência, como a punição do pobre, e, uma vez que ela era também meio de salvação futura, uma tal punição podia se revestir de satisfação. No fundo, o trabalho importava menos do que a submissão.
A burguesia não domina, ela explora. Ela submete pouco, ela prefere usar. Como não se viu que o princípio do trabalho produtivo substituiu simplesmente ao princípio da autoridade feudal? Por que não se quis compreender isso?
Seria porque o trabalho melhora a condição dos homens e salva os pobres, pelo menos ilusoriamente, da danação eterna? Sem dúvida, mas hoje se torna evidente que a chantagem de dias melhoras sucede docilmente à chantagem de salvação no além. Em um ou outro caso, o presente está sempre sob o punho da opressão.
Seria porque ele transforma a natureza? Sim, mas o que farei de uma natureza ordenada em termos de lucros em uma ordem de coisas onde a inflação técnica encobre a deflação dos objetivos da vida? Além disso, da mesma forma que o ato sexual não tem por função procriar, mas eventualmente gera crianças, é como subproduto que o trabalho organizado transforma a superfície dos continentes, não como finalidade. Trabalhar para transformar o mundo? Vejam só! O mundo se transforma pelo molde do trabalho forçado; e é por isso que ele se transforma para pior.
O homem se realizará em seu trabalho forçado? No século XIX, subsistia na concepção de trabalho um traço ínfimo de criatividade. Zola descreve um concurso de fabricantes de prego onde os trabalhadores competiam em habilidade para realizar sua minúscula obra-prima. O amor pelo ofício e a pesquisa de uma criatividade já sufocada permitia sem dúvida suportar dez a quinze horas às quais ninguém poderia resistir se não houvesse alguma forma de prazer. Uma concepção ainda artesanal em seu princípio deixava a cada um a possibilidade de ter um conforto precário no inferno da fábrica. O taylorismo deu o golpe de misericórdia em uma mentalidade preciosamente entretida pelo capitalismo arcaico. É inútil esperar de um trabalho feito na cadeia de produção mais do que uma caricatura de criatividade. O amor ao trabalho bem feito e o gosto pela promoção no trabalho são hoje a marca indelével da fraqueza e da submissão mais estúpidas. É por isso que, onde quer que a submissão seja exigida, o velho peido ideológico toma seu rumo, do Arbeit macht frei [o trabalho liberta] dos campos de concentração aos discursos de Henry Ford e de Mao Tsé-Tung.
Qual é então a função do trabalho forçado? O mito do poder exercido conjuntamente pelo chefe e por Deus achava na unidade do sistema feudal a sua força de coerção. Ao destruir o mito unitário, o poder fragmentário da burguesia abre, sob o signo da crise, o reino de ideologias, que jamais atingirão, nem sozinhas nem juntas, um quarto da eficácia do mito. A ditadura do trabalho produtivo oportunamente entra em cena. Ela tem por missão enfrequecer biologicamente o maior número de homens, castrá-los coletivamente e embrutecê-los, a fim de torná-los receptivos às mais medíocres, menos viris, mais senis ideologias jamais vistas na história da mentira.
O proletariado do começo do século XIX consiste de uma maioria de pessoas diminuídas fisicamente, de homens sistematicamente alquebrados pela tortura da oficina. As revoltas vêm de pequenos artesãos, de categorias privilegiadas ou de sem-trabalho, não de trabalhadores violentados por quinze horas de labor. Não é perturbador constatar que a diminuição do número de horas de trabalho surge no momento em que o espetáculo de variedades ideológicas produzidos pela sociedade de consumo parece ser capaz de substituir eficazmente os mitos feudais detruídos pela jovem burguesia? (Há pessoas que realmente trabalharam para comprar um refrigerador, um carro, uma televisão. Muitos continuam a fazê-lo, "convidados" que são a consumir a passividade e o tempo vazio que lhes "oferece" a "necessidade" de produzir.)
Estatísticas publicadas em 1938 indicam que a aplicação das técnicas de produção contemporâneas reduziriam a duração do tempo de trabalho necessário para três horas por dia. Não somente estamos longe disto com nossas sete horas de trabalho, mas após ter usado gerações de trabalhadores prometendo-lhes o bem-estar que ela lhe vende a prazo, a burguesia (e sua versão sovietizada) prossegue a sua destruição do homem fora do trabalho. Amanhã ela exibirá como isca suas cinco horas de desgaste cotidiano exigidas por um tempo de criatividade que crescerá na proporção em que puder ser preenchido de uma impossibilidade de criar (a famosa organização do lazer).
Já foi dito corretamente: "A China enfrenta problemas econômicos gigantescos; para ela, a produtividade é uma questão de vida ou morte." Ninguém pensa em negá-lo. O que me parece grave não se refere aos imperativos econômicos, mas à maneira de respondê-lo. O Exército Vermelho de 1917 se constituía em um tipo novo de organização. O Exército Vermelho de 1960 é um exército como se encontra nos países capitalistas. As circunstâncias provaram que a sua eficácia ficava muito abaixo das possibilidades de milícias revolucionárias. Da mesma forma, a economia chinesa planificada, ao não permitir aos grupos federados a organização autônoma de seu trabalho, se condena a tornar-se uma forma de capitalismo aperfeiçoado, chamado socialismo. Alguém se deu ao cuidado de estudar as modalidades de trabalho dos povos primitivos, a importância do jogo e da criatividade, o incrível rendimento obtido por métodos que uma gota das técnicas modernas tornaria cem vezes mais eficazes ainda? Parece que não. Todo apelo à criatividade vem de cima. Ora, só a criatividade é espontaneamente rica. Não é da produtividade que devemos alcançar uma vida rica, não é da produtividade que devemos esperar uma resposta coletiva e entusiasta à demanda econômica. Mas o que dizer mais quando sabemos como o trabalho é cultuado em Cuba e na China, e com que facilidade as páginas virtuosas de Guizot passam de agora em diante em um discurso de 1o. de Maio?
À medida que a automação e a cibernética deixam prever a substituição em massa de trabalhadores por escravos mecânicos, o trabalho forçado revela pertencer aos processos bárbaros de manutenção da ordem. O poder fabrica assim a dose de fadiga necessária à assimilação passiva de seus decretos televisionados. Por qual recompensa trabalhar de agora em diante? A farsa se esgotou; não há mais nada a perder, nem mesmo uma ilusão. A organização do trabalho e a organização do lazer resguardam as tesouras castradoras encarregadas de melhorar a raça dos cães submissos. Veremos qualquer dia os gravistas, reivindicando a automação e a semana de dez horas, escolherem, como forma de greve, fazer amor nas fábricas, nos escritórios e nos centros culturais? Somente se inquietariam e se espantariam os planejadores, os gerentes, os dirigentes sindicais e os sociólogos. Com razão, talvez. Afinal, é a pele deles que está em jogo.

Capítulo de Traité de savoir-vivre à l'usage de jeunes générations